domingo, 20 de março de 2011

Diante da Lei – Franz Kafka

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. — "É possível" – diz o guarda. — "Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. — "Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".



O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: — "Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste". Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece osoutros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei.



Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda.



Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte esta próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo.



— "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda.



— "És insaciável". — "Se todos aspiram a Lei", disse o homem.



— "Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar. O guarda da porta, apercebendo se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte. — "Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a".



Franz Kafka (Praga, 3 de julho de 1883Klosterneuburg, 3 de junho de 1924) foi um dos maiores escritores de ficção da língua alemã do século XX. Kafka nasceu numa família de classe média judia em Praga, Áustria-Hungria (atual República Checa). O corpo de obras suas escritas— a maioria incompleta e publicadas postumamente[1] — destaca-se entre as mais influentes da literatura ocidental[2].

Seu estilo literário presente em obras como a novela A Metamorfose (1915) e romances incluindo O Processo (1925) e O Castelo (1926) retrata indivíduos preocupados em um pesadelo de um mundo impessoal e burocrático. (Wikipédia – com hiperlinks de acesso - clique nas palavras em azul)



Comentário;



Kafka foi um escritor de um subjetivismo marcante, surrealista, quase sempre estabelecendo correlação de forças entre os que dominam e os que são dominados, de sorte que ele apresenta a Lei no contexto de uma parábola, ora assumindo o lugar das leis que regem a sociedade, porém, prestigiando um pequeno contingente de privilegiados em detrimento dos menos favorecidos pela sorte, que por suas vezes almejam que elas atendam aos seus direitos. Assim faz-nos pensar é que essas mesmas leis, pela burocracia que carregam em si, quando não impedem, pelo menos dificultam para que o homem comum tenha acesso a elas. Para isso os guardiões estariam colaborando com um formalismo incompreensível a essas pessoas comuns.



Alguém já disse, que de outra forma as Leis a que Kafka se refere poderiam ser interpretadas como sendo as Leis de Deus, que para o camponês tornam-se inexplicáveis pelo fato de elas o estarem excluindo, ou seja, as leis de Deus não estariam consentindo que o camponês fosse aceito.



Em se admitindo essa segunda hipótese, estaria Kafka fazendo-nos inferir que o camponês teria desistido por acovardamento de obter da lei o seu direito, por causa das dificuldades inerentes ao processo. Assim ficaria tentando entender Deus através de seus representantes na Terra — o primeiro guardião que poderia, talvez, ser um sacerdote. Nesse caso então, a crítica estaria sendo dirigida à Igreja e seus representantes, como se eles tivessem negando ao homem, a verdadeira natureza ou essência de Deus, de forma a mantê-lo cativo e fiel em vez de libertar-lhe dos pecados materiais conforme dizem fazer.



Assim dado ao subjetivismo parabólico do autor, várias ilações podem ser aventadas, ficando pois, a cargo do leitor segundo a sua interpretação.

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