quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O Caso Dos Exploradores De Cavernas




Resumido por Luiz Carlos Nogueira

nogueirablog@gmail.com



Estamos supostamente no mês de maio do ano de 4.299, conforme Lon L. Fuller (professor de “Jurisprudence” da Harvard Law School ) narra em seu livro: (“O Caso dos Exploradores de Cavernas”, traduzido do texto original em inglês, por Plauto Faraco de Azevedo, para Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976), quando quatro exploradores de cavernas, pertencentes à Sociedade Espeleológica Amadora, foram condenados à penas de morte por enforcamento, sob a acusação de haverem matado o quinto homem do grupo, para que pudessem comer a sua carne e assim evitar com que todos morressem de inanição.



Ocorre que esses exploradores dentre os quais estava Roger Whetmore, haviam entrado numa caverna de rocha calcária existente no Planalto Central de Commonwealth, e quando já bem distantes da entrada, ouve um desmoronamento que lhes bloqueou a saída, ficando os mesmos, presos no interior da caverna.



Como esses exploradores perceberam da difícil situação em que se encontravam, aproximaram-se da entrada que ficou bloqueada pelas pedras, na esperança de que alguma equipe de socorro pudesse remover o entulho que os deixava presos, o que aliás foi providenciada pelo secretário da Sociedade, porém a referida equipe não via a possibilidade de livrá-los daquela prisão, em tempo suficiente para que não morressem de fome, conforme o mesmo comunicou ao familiares dos soterrados.



Havia passado vinte dias quando foi possível estabelecer contato com os exploradores, porque um deles tinha um rádio transistorizado. Mas os engenheiros da equipe de salvamento estimou que ainda seriam necessários mais dez dias para conseguirem fazer o salvamento, mas os médicos informaram que possivelmente não sobreviveriam por mais esse tempo. Foi aí que Roger que representava os exploradores disse que só haveria possibilidade de sobrevivência do grupo, se um deles morresse para alimentar os demais. Depois disso perdeu-se o contato com eles porque as pilhas do rádio se descarregaram.



Quando, porém, no trigésimo dia após conseguirem ser resgatados, ficou-se sabendo que Roger havia sido morto para servir de alimentos aos seus companheiros.



Os quatro acusados argumentaram em sua defesa, que foi o próprio Roger quem primeiro sugeriu que um deles devesse ser morto para servir de alimento aos demais. E que isso foi resolvido de comum acordo, devendo haver uma disputa usando dois dados que o próprio Roger, a vítima, carregava consigo, mas que este, poucos segundos antes do arremesso dos dados, se arrependeu e comunicou aos demais que teria desistido do acordo.



No entanto, os outros companheiros lhe acusarem de haver quebrado o acordo, com o que não concordaram e assim arremessaram os dados. E quando chegou a vez de Roger, o mesmo recusou-se jogar os dados, mas um deles se adiantou jogando-os em seu lugar, perguntando se a vítima tinha alguma objeção quanto ao resultado apontado pelos dados. Assim, como a vítima declarou que não, e já que a sorte lhe havia condenado, seus companheiros o mataram.




Por óbvio, os quatro exploradores resgatados com vida, foram denunciados por homicídio, tendo sido julgados e condenados à forca sob a alegação de haverem assassinado Roger. Mas os jurados pediram ao chefe do Poder Executivo para a sentença fosse comutada em prisão por seis meses. No entanto, o Executivo nada resolveu, como se estivesse esperando pela decisão do Judiciário em grau de recurso.



J.Foster, na defesa dos acusados invocou a tese de que o direito positivo não poderia ser aplicável ao caso, que é regido pela "lei da natureza" (direito natural), Dizendo: “[...] Funda-se este entendimento na proposição de que o nosso direito positivo pressupõe a possibilidade da coexistência dos homens em sociedade. Surgindo uma situação que torne a coexistência impossível, a partir de então a condição que se encontra subjacente a todos os nossos precedentes e disposições legisladas cessou de existir. Desaparecendo esta condição, minha opinião é de que a coercibilidade do nosso direito positivo desaparece com ela. Nós não estamos habituados a aplicar a máxima cessante ratione legis, cessat et ipsa lex ao conjunto do nosso ordenamento jurídico, mas creio que este é um caso em que esta máxima deve ser aplicada.” “[...]Concluo, portanto, que no momento em que Roger Whetmore foi morto pelos réus, eles se encontravam não em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado natural", como se diria na singular linguagem dos autores do século XIX. A conseqüência disto é que a lei que lhes é aplicável não é a nossa, tal como foi sancionada e estabelecida, mas aquela apropriada a sua condição. Não hesito em dizer que segundo este princípio eles não são culpados de qualquer crime.”



J. Tatting, disse:
No cumprimento de meus deveres como juiz deste Tribunal, tenho sido normalmente capaz de dissociar os aspectos emocionais e intelectuais de minhas reações e decidir o caso sub judice inteiramente baseado no último. Examinando este trágico caso, sinto todavia que me faltam os recursos habituais. Sob o aspecto emocional sinto-me dividido entre a simpatia por estes homens e um sentimento de aversão e revolta com relação ao monstruoso ato que cometeram. Alimentei a esperança de que seria capaz de pôr estas emoções contraditórias de lado como irrelevantes e, assim, decidir o caso com base em uma demonstração convincente e lógica do resultado reclamado por nossa lei. Infelizmente não alcancei esta liberação. Ao analisar o voto que terminou de enunciar meu colega Foster, sinto que está minado por contradições e falácias. Comecemos pela sua primeira proposição: estes homens não estavam sujeitos à nossa lei porque não se encontravam em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado de natureza". Não me parece claro porque isto seja assim, se em virtude da espessura da rocha que os aprisionou ou porque estavam famintos ou porque tinham estabelecido uma "nova constituição", segundo a qual as regras usuais de direito deviam ser suplantadas por um lanço de dados. E outras dificuldades fazem-se sentir. Se estes homens passaram da jurisdição da nossa lei para aquela da "lei da natureza", em que momento isto ocorreu? Foi quando a entrada da caverna se fechou? Quando a ameaça de morte por inanição atingiu um grau indefinido de intensidade? Ou quando o contrato para o lanço de dados foi celebrado?Estas incertezas que emergem da doutrina proposta pelo meu colega são capazes de causar reais dificuldades. Suponha-se, por exemplo, que um destes homens tenha feito seu vigésimo primeiro aniversário enquanto estava aprisionado no interior da montanha. Em que data teríamos que considerar que ele completou a maioridade - quando atingiu os vinte e um anos, no momento em que se achava, por hipótese, subtraído dos efeitos de nossas leis, ou quando foi libertado da caverna e voltou a submeter-se ao império do que o meu colega denomina nosso "direito positivo”. Estas dificuldades, no entanto,servem para revelar a natureza fantasiosa da doutrina que é capaz de originá-las.[...]” Continuando, disse o Juiz:



“[...] Dei a este caso a maior atenção de que sou capaz. Tenho dormido muito pouco desde que nos foi apresentado à decisão. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de vista de meu colega Foster, detém-me a impressão de que seus argumentos são intelectualmente infundados e completamente abstratos. De outro lado, quando me inclino no sentido de manter a condenação, choca-me o absurdo de condenar estes homens à morte quando a salvação de suas vidas custou as de dez heróicos operários. Lamento que ao Representante do Ministério Público tenha parecido adequado acusá-los de homicídio. Se tivéssemos um dispositivo legal capitulando como crime o fato de comer carne humana, esta teria sido uma acusação mais apropriada. Se nenhuma outra acusação adequada aos fatos deste caso podia ser formulada contra os acusados, teria sido preferível, penso, não tê-los pronunciado. Infelizmente, entretanto, estes homens foram processados e julgados e, em decorrência disto, nós nos vemos envolvidos por este infeliz litígio.



Uma vez que me revelei completamente incapaz de afastar as dúvidas que me assediam, lamento anunciar algo que creio não tenha precedentes na história deste Tribunal. Recuso-me a participar da decisão deste caso.[...]”



J. Keen. Foi de opinião de que a sentença condenatória, devia ser confirmada, assim se expressando: Eu gostaria de começar deixando de lado duas questões que não são da competência deste Tribunal.



A primeira delas consiste em saber-se se a clemência executiva deveria ser concedida aos réus caso a condenação seja confirmada. Esta é, porém, segundo o nosso sistema constitucional, uma questão da competência do chefe do Poder Executivo e não nossa. Desaprovo, portanto, aquela passagem do voto do presidente deste Tribunal em que ele efetivamente dá instruções ao chefe do Poder Executivo acerca do que deveria fazer neste caso e sugere alguns inconvenientes que adviriam se tais instruções não fossem atendidas. Isto é uma confusão de funções governamentais - uma confusão em que o judiciário deveria ser o último a incorrer. Desejo esclarecer que se eu fosse o chefe do Poder Executivo, iria mais longe no sentido da clemência do que aquilo que lhe foi solicitado. Eu concederia a estes homens perdão total, pois creio que eles já sofreram o suficiente para pagar por qualquer delito que possam ter cometido. Quero que seja entendido que esta observação é feita na minha condição privada, como cidadão que, em razão de seu oficio, adquiriu um íntimo conhecimento dos fatos deste caso. No cumprimento dos meus deveres como juiz não me incumbe dirigir instruções ao chefe do Poder Executivo, nem tomar em consideração o que ele possa ou não fazer, a fim de chegar à minha própria decisão que deverá ser inteiramente guiada pela lei desta Commonwealth.”


Continuando Keen, disse: [...]como juiz, jurei aplicar não minhas concepções de moralidade, mas o direito deste país. Pondo esta questão de lado penso que posso também excluir sem comentário a primeira e mais poética porção do voto do meu colega Foster. O elemento de fantasia contido nos argumentos por ele desenvolvidos revelou-se de maneira flagrante na tentativa um tanto solene do meu colega Tatting de encará-los seriamente.



A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". Devo supor que qualquer observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significado natural, concederá imediatamente que os réus privaram "intencionalmente da vida a Roger Whetmore".



De onde, pois, surgem as dificuldades do caso e a necessidade de tantas páginas de discussão a respeito do que deveria ser tão óbvio?[...]


Minha conclusão é de que se deve confirmar a sentença condenatória.”



J. Handy. Foi da opinião de que os réus são inocentes da prática do crime, dizendo: Ouvi com estupefação os angustiados raciocínios que este caso trouxe à tona. Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lançam uma obscura cortina de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado para decidir. Nesta tarde ouvimos arrazoados sobre as distinções entre direito positivo e direito natural, a letra e o propósito da lei, funções judiciais e executivas, legislação oriunda do judiciário e do legislativo. Minha única decepção foi que ninguém levantou a questão da natureza jurídica do contrato celebrado na caverna - se era unilateral ou bilateral, e se não se poderia considerar que Whetmore revogou a sua anuência antes que se tivesse atuado com fundamento nela. O que é que todas essas coisas tem a ver com o caso? O problema que temos que decidir é o que nós, como funcionários públicos, devemos fazer com esses acusados. Esta é uma questão de sabedoria prática a ser exercida em um contexto, não de teoria abstrata, mas de realidades humanas. Quando o caso é examinado sob essa luz, torna-se, segundo me parece, um dos mais fáceis de decidir dentre os que já foram argüidos perante este Tribunal.” “[...]Concluo que os réus são inocentes da prática do crime que constitui objeto da acusação e que a sentença deve ser reformada.”



J.Tatting – O presidente do Tribunal perguntou-me se, depois dos dois votos que acabam de ser enunciados, eu desejaria reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero expressar que depois de ouvi-los sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de que não devo participar do julgamento.


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Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal de primeira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o verdugo público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na forca.”



POST SCRIPTUM DO LIVRO

Tendo o Tribunal pronunciado seu julgamento, o leitor intrigado pela escolha da data pode desejar ser relembrado que os séculos que nos separam do ano 4300 são aproximadamente

os mesmos que se passaram desde a Época de Péricles. Não há provavelmente nenhuma necessidade de observar que o Caso dos Exploradores de Cavernas não pretende ser nem um trabalho de sátira, nem uma profecia em qualquer sentido comum do termo. No que concerne aos juízes que compõem o Tribunal do Presidente Truepenny, eles são naturalmente tão fictícios quanto os fatos e precedentes com os quais lidam. O leitor, que se recusar a aceitar este ponto de vista e que procurar descobrir semelhanças contemporâneas onde nada disso foi buscado ou considerado, deveria ser advertido de que se mete numa aventura sob sua própria responsabilidade, a qual pode levá-lo a desviar-se das verdades enunciadas nos votos emitidos pela Corte Suprema de Newgarth. O caso foi imaginado com o único propósito de focalizar certas posturas filosóficas divergentes a respeito do direito e do governo. Posturas estas que são hoje ainda as mesmas que se agitavam nos dias de Platão e Aristóteles. E talvez elas continuem a apresentar-se mesmo depois que a nossa era tenha pronunciado a propósito a sua última palavra. Se há alguma espécie de predição no caso, não vai além da sugestão de que as questões nele versadas encontram-se entre os problemas permanentes da raça humana.

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