Na época longínqua em que me
sobrava tempo para passatempos, transitei muito pelos labirintos de palavras
cruzadas, enquanto meus colegas discutiam futebol. Seria mais condizente com a
realidade afirmar que perdiam o tempo nessas discussões, tão intermináveis
quanto inúteis e insuportáveis. O deles e o meu eram passatempos, mas estou
interessado em saber qual dos dois proporcionava maior progresso cultural.
Fazendo uma avaliação retrospectiva lá e cá, devo concluir que o resultado pesa
largamente em favor das minhas opções. Não me refiro a desproporções tipo
gigante versus pigmeus, estou apenas aludindo à qualidade do que uns e outros
aprendemos. Com um pequeno exemplo, estou certo de remover também as suas
dúvidas.
Apenas para assegurar que você e eu estamos percorrendo os mesmos caminhos,
lembro-lhe que em palavras cruzadas você anota primeiro as palavras “fáceis”,
ou seja, as que você conhece bem e cabem no espaço correspondente. Concluída
esta primeira fase nas horizontais, depois nas verticais (estas já ficaram
facilitadas), sobram palavras incompletas, com porcentagem maior ou menor de
letras preenchidas. Você reexamina então os enunciados das palavras
incompletas, tentando completá-las. Na terceira fase, geralmente sobram poucas
palavras, às quais você dedicará maior esforço. Geralmente são palavras
desconhecidas, ou os dados conhecidos não permitem arriscar. Vamos a um
exemplo, com o qual já entro no meu tema de hoje.
Para a última fase, sobrou a palavra correspondente ao enunciado ilha
grega, na
situação seguinte: PA_ _OS. Se você desconhece nomes das milhares de ilhas
gregas, nem se preocupou com a palavra na primeira fase. Já na situação atual,
as duas letras faltantes podem estar entre 529 duplas possíveis com as 23
letras do alfabeto. Se você sabe, por exemplo, que São João Evangelista
escreveu o Apocalipse na ilha de PATMOS, estará resolvido o seu passatempo do
dia, embora seja sempre possível outra ilha desconhecida (para mim, pelo menos)
com letras diferentes de TM.
O grau de facilidade para alcançar a solução pode variar muito, em função da
cultura adquirida. Quando o esforço cultural se limitou a assuntos
importantíssimos – por exemplo, os dribles e gols futebolísticos do momento, as
celebridades musicais fabricadas pela mídia, os profundos temas filosóficos dos
botequins e novelas, as piadas de pocilga – o tempo para resolver as cruzadas
terá proporção com o que não foi dedicado à verdadeira cultura.
Esse
confinamento “cultural” me faz lembrar um conto de Malba Tahan sobre o sábio da
efelogia. Era um
ex-prisioneiro político que encontrara na cela um único exemplar de
enciclopédia, correspondente à letra F. Sobrava-lhe tempo, e dedicou grande
parte dele a ler e reler esse volume. Depois de cumprir a pena e refazer
amigos, exibia sua cultura “vastíssima”, no entanto limitada a palavras raras
sobre as quais dissertava; e cuja inicial era sempre F. Há sumidades assim,
limitadas ao F de futebol; e ao silêncio forçado e envergonhado, quando o assunto
é outro.
Patmos é uma ilha pequena do Mar Egeu, de pouca importância cultural e
econômica. Sua importância resulta de ter vivido lá São João Evangelista,
exilado após sair milagrosamente vivo e ileso de uma caldeira com óleo
fervente. Dedicou ali parte do seu tempo livre para redigir o Apocalipse. Só
este fato já me basta para venerar à distância essa ilha.Veja bem que não falta
importância histórica e cultural em ilhas gregas maiores ou menores. Por
exemplo, nosso vocabulário é abundante em referências a algumas dessas ilhas ou
suas cidades: Lacônico (Lacônia), espartano (Esparta), beócio (Beócia), arcádia
(Arcádia), lésbico (Lesbos), cretino (Creta), sibarita (Síbaris), Rodes
(Colosso), coríntio, Corinthians (Corinto, viu!?). Uma cidade por lá se chama
Jacinto, mas é melhor você e eu não nos preocuparmos com ela...
Não vou insistir nas minhas avaliações sobre discussões futebolísticas, já bem
definidas e definitivas, mas quero avaliar se as palavras cruzadas influem na
formação cultural de uma pessoa. Sempre me foi ensinado que esse passatempo é
instrutivo. Mas se eu tomo um exemplo como esse de Patmos, devo pelo menos
rebaixar alguns graus na sua utilidade. De fato eu consigo completar a palavra,
quando ela aparece nas cruzadas. Mas terá havido algum acréscimo de
conhecimento real e valioso à minha cultura, depois que consegui formá-la com
segurança? Basta eu saber que existe uma ilha grega com esse nome? É claro que
serviu-me para rememorar uma palavra meio perdida nos labirintos da memória,
mas eu já conhecia a palavra e algo mais sobre ela, tanto que pude incluir com
segurança as duas letras faltantes. O conhecimento veio antes de resolver o
problema, não veio por tê-lo resolvido.
Mais um detalhe importante. Quando completo todas as palavras, limito-me a
declarar vitória. Salvo em casos muito excepcionais, não procuro esclarecimento
adicional sobre palavras desconhecidas que surgiram, e o próprio passatempo não
me fornece mais dados. Basta isso para dizer que aprendi mais algumas palavras? Não me
parece, pois a verdadeira cultura vai muito além disso.
Outros aspectos remetem a considerações sobre a moderna tecnologia da
informação, mas o limite de espaço me leva a adiá-las para uma próxima crônica.
(*) Jacinto Flecha é médico e
colaborador da Abim
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