terça-feira, 17 de maio de 2011

Fato Notório - Entrevista - Francisco Rezek fala sobre a extradição de Césare Battisti




FRANCISCO REZEK Jurista, graduado em direito pela UFMG, doutor em Direito Internacional Público (Universidade de Paris) e pós-doutor (Universidade de Oxford). Foi procurador da República, ministro do STF por duas vezes (1983-1990; 1992-1997), juiz do Tribunal Internacional das Nações Unidas – Corte de Haia (1997-2006) e ministro das Relações Exteriores do Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992).


15/05/2011 06h00 - Jurídicas


"Eu tenho a certeza de que [Battisti] será [extraditado]. O STF não convalidará o erro mais grosseiro que já se cometeu na Praça dos Três Poderes."









FATO NOTÓRIO: As diferenças culturais, religiosas, geográficas e sociais entre as nações impedem uma legislação internacional superior a que temos atualmente? A ONU poderia conduzir um processo neste sentido, que englobe questões cíveis, criminais, ambientais, dentre outros temas?



FRANCISCO REZEK: Uma legislação mínima já existe. Desde 1919 foi criada a Organização Internacional do Trabalho. Nos seus grandes lances passou do domínio do direito interno de cada país, para um domínio coletivo.



Desde então nós temos vários ramos do direito entre as nacionalidades: direitos humanos, direito ambiental, direito do trabalho. E por conta disso o que falta é generalizar essa internacionalização do direito. Isso é um processo lento e a ONU não está dando conta neste momento nem de realizar o seu objetivo principal, que é manter a paz e a segurança coletiva. Ela não poderia consagrar as suas energias a uma tarefa acessória, como a internacionalização do direito.



Mas outras instituições se empenham nisso. Há grandes redes de cooperação internacional voltadas para isso envolvendo países como a França, EUA, a China e o Brasil, por exemplo, entre outros. É algo a que chegaremos sem dúvidas, mas é um processo lento. Agora não há dúvida de que o mínimo já se estabeleceu em matéria de direitos humanos, direito ambiental e direito do trabalho. Além do direito penal internacional, que também é um ramo florescente no seu aspecto internacional.
O restante virá com o passar do tempo.




FATO NOTÓRIO: Césare Battisti: o STF errou ao deixar que o ex-presidente Lula desse uma decisão discricionária sobre a extradição ou não do italiano? O STF deve manter sua extradição?



FRANCISCO REZEK: O Supremo teve naquele caso uma das suas sessões mais confusas desde que o tribunal existe. E, por conta disso, a opinião pública entendeu mal a decisão. E o governo, obviamente, entendeu mal a decisão.



O Supremo não deixou por conta do presidente da República uma decisão política. O Supremo concedeu a extradição, embora algumas vozes isoladas tenham dito que o presidente da República é livre para extraditar ou não – o que é um disparate.



A verdade é que o que prevaleceu foi o entendimento de que o presidente da República está adstrito ao Tratado. Ele poderia ser livre de extraditar ou não, se não houvesse tratado. Se o pedido italiano fosse fundado numa mera promessa de reciprocidade. Mas não, o Tratado existe. E a luz do Tratado ele não poderia rever a decisão do Supremo, como fez.



Eu tenho a certeza de que será [extraditado]. O Supremo Tribunal Federal não convalidará o erro mais grosseiro que já se cometeu na Praça dos Três Poderes.




FATO NOTÓRIO: Há vinte anos, o senhor foi um dos expoentes do governo de Fernando Collor de Mello e trabalhou na abertura da economia brasileira à importação e um dos mentores intelectuais do Mercosul. Qual sua avaliação vinte anos depois destes processos que o país atravessou?



FRANCISCO REZEK: Aquele momento foi realmente de abertura do país ao exterior. O Brasil já havia recuperado o seu prestigio político com a volta da democracia. Mas era ainda um país econômico e socialmente encapsulado. Foi no ano de 90 que este país abriu as portas ao mundo em todos os sentidos. E esse foi um grande feito da época.



A fundação do Mercosul veio naquele mesmo momento, ao lado do preparo da grande Conferência do Rio de Janeiro sobre o meio ambiente e desenvolvimento. O Mercosul andou lentamente, mas andou com passos seguros. A nossa idéia, sempre fielmente executada, foi a de não criar despesas para o tesouro público desses quatro países antes de conseguir resultados.



Nós olhávamos para o Pacto Andino e víamos ali um modelo de como não fazer. O Pacto Andino tinha corte de justiça, tinha secretarias, tinha um aparato oneroso e não servia para nada. Nós tínhamos ali um modelo do que não fazer e seguimos, tanto que o Mercosul não teve personalidade jurídica até o protocolo de Ouro Preto – era apenas uma reunião de governantes.



Esse ritmo é necessariamente lento, mas ele me parece bastante satisfatório, afinal de contas quando o Mercosul foi criado – sendo o Brasil o principal país do grupo – nós éramos um pais sem moeda. A inflação era tão galopante que dava para dizer, sem maior exagero, que o Brasil era um país sem moeda. Só em 1994 na administração do Itamar Franco, do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso é que o Brasil passou a ter uma moeda confiável, uma moeda forte. Do ponto de vista das finanças e da inflação, o Governo Collor não foi feliz, foi tão infeliz quanto o Governo Sarney.



De modo que o Mercosul não pôde imediatamente realizar aquilo que veio a realizar nos anos seguintes, embora esse ritmo não deva ser tão acelerado quanto o que não nos deva conduzir tão cedo ao grau de integração da União Européia.




FATO NOTÓRIO: Reduzindo o âmbito de uma legislação internacional. Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, juntamente com os novos parceiros, não poderiam ter uma legislação mínima do Mercosul?



FRANCISCO REZEK: Nós temos uma legislação, nós temos normas comunitárias que já fazem funcionar um sistema de arbitragem bastante idôneo. Que fazem funcionar um tribunal de revisão, que é um tribunal que não está o tempo todo reunido, mas um tribunal que reúne esporadicamente pra rever decisões arbitrais. Isso tem funcionado satisfatoriamente.



A ordem jurídica do Mercosul é correta e tem levado, por exemplo, a solução fácil dos pequenos conflitos de interesses que surgem no dia-a-dia, sobretudo no pólo da relação Brasil/Argentina. Todo dia surgem pequenas diferenças do entendimento da legislação comunitária, que são resolvidas diplomaticamente. Raras vezes foi preciso fazer algo mais aparatoso do que simples entendimento diplomático.




FATO NOTÓRIO: É preocupante o avanço de governos populistas na América do Sul? A democracia, os direitos fundamentais e a segurança jurídica correm riscos?



FRANCISCO REZEK: Não há dúvida nenhuma. Os direitos e garantias correm riscos não só no plano individual: no plano das pessoas, das famílias, das empresas, mas até no plano de outros países. Por exemplo, a falta de apreço pelo direito fez com que o Governo da Bolívia fizesse aquela façanha relacionada com os bens da Petrobras.



Justiça seja feita, por um lado o presidente da República, que era um homem marcado pela incontinência verbal, disse graves impropriedades. Disse que era um gesto soberano da Bolívia, quando nenhuma soberania justifica a expropriação do alheio. Mas ao mesmo tempo em que o presidente da República dizia tolices, o presidente da Petrobras era instruído a proceder de acordo com a lei na defesa dos nossos direitos e foi o que ele fez. E a Petrobras não cedeu, ameaçou com arbitragem justificadamente e acabou compondo ali os interesses sem prejuízo para a empresa brasileira.



Mas, enfim isso era só pra ilustrar os fatos de que governos populistas dessa natureza agridem cotidianamente o direito e eventualmente o direito de outros países. Não só do seu próprio cidadão, famílias e empresas. E governos dessa natureza também dizem coisas extremamente nocivas à boa convivência internacional.



Me recordo do dia em que o Governo da Colômbia fez uma incursão de fronteira em território equatoriano pra dizimar um aparato das Farc, que correra para o território equatoriano depois de realizar os seus crimes usuais. O presidente equatoriano Rafael Correia, que me parece o mais demagogo dentre os populistas da América do Sul contemporânea, foi à televisão lamentar que aquilo tenha sido uma operação de guerra.



Veja bem: ele não lamentou o uso do território equatoriano para um exercício de uma jurisdição policial militar colombiana. Ele lamentou que aquilo tivesse sido uma operação de guerra, quando ele teria preferido que fosse uma operação de paz. E disse isso com aqueles olhos azuis verdilhados na tela, como se esse discurso convencesse alguém de que a proposta era alguma coisa decente.



O que ele queria como operação de paz? Que os colombianos fossem negociar com os guerrilheiros das Farc, que dessem, quem sabe, dinheiro em troca da liberdade de reféns? Era isso que ele propunha como uma operação de paz? Um dia vai se escrever sobre a série de descalabros que esse pobre continente tem ouvido da boca de presidentes populistas neste momento da história.

FATO NOTÓRIO: Osama Bin Laden foi morto há poucos dias numa operação militar norte-americana no Paquistão. A ação dos EUA foi acertada? Qual o limite do respeito da soberania entre as nações para uma ação como a que matou o maior terrorista do mundo?



FRANCISCO REZEK: Houve uma violação da soberania territorial do Paquistão, mas os EUA explicam dizendo que sabiam que contariam com a compreensão paquistanesa e sabiam que se o tema conspirasse antecipadamente, a operação seria fadada ao fracasso.



Dá pra entender essas razões. No fundo, este episódio Bin Laden, e vários outros da história recente, significam violações do direito que o violador – no caso o governo norte-americano – explica com argumentos tirados do direito penal: A legítima defesa e o estado de necessidade. Esses elementos tirados do direito penal comum a todos os países, descriminalizam certos atos que objetivamente poderiam ser vistos como ilegítimos, como criminosos.



Tudo é uma questão de maior ou menor condescendência política com essa ação de defesa contra o terrorismo. Não há duvida de que há argumentos justificativos dessas quebras do direito. A teoria do mal menor para evitar o mal maior – a teoria do estado de necessidade. Agora, isso tudo revela a falta de primado do direito que a sociedade internacional contemporânea enfrenta.



As Nações Unidas não resolvem nada e tudo se resume em ações particulares individuais ou grupais deste ou daquele Estado, associados a outros e sempre à base de um direito controvertido, que não convence a todos.




FATO NOTÓRIO: Conte-nos um pouco de sua atuação frente à Corte Internacional de Haia – órgão jurisdicional das Nações Unidas.



FRANCISCO REZEK: Do ponto de vista da quantidade de trabalho, para quem saiu do Supremo brasileiro, a Corte da Haia é um recreio. Mas a importância dos feitos é incalculável. Cada acórdão da Corte da Haia é um volume de biblioteca.



Fora os outros volumes, das discussões entre advogados, cada processo na Corte da Haia é o que teria sido no passado uma guerra, com milhares de baixas, com prejuízos incalculáveis. Então, são coisas de grande importância nas quais os juízes consagram grande parte do seu tempo.
Do ponto de vista do desgaste físico que a corte comporta, esse é bem menor do que aquele que enfrentam os juízes brasileiros no seu dia-a-dia.




FATO NOTÓRIO: Houve algum caso/processo que marcou os anos nos quais o senhor foi um dos juízes da corte?



FRANCISCO REZEK: Os casos mais interessantes foram os relacionados com a pena de morte dos EUA, nos processos movidos pelo Paraguai, depois pela Alemanha, depois pelo México.



E o caso do Muro na Palestina, que a corte definiu a ilegalidade do Muro, tal como qualquer estudante de direito definiria – as coisas eram muito óbvias.




FATO NOTÓRIO: A oposição tem criticado expedientes legislativos do atual governo, como no caso do salário mínimo sem apreciação do Congresso e a MP “Árvore de Natal”, que demonstrou pouco cuidado com técnicas legislativas. Qual sua opinião?



FRANCISCO REZEK: Eu vejo e a noite de ontem ilustrou bem isso [tentativa de votação do Código Florestal]. O caos que se instalou na Câmara dos Deputados na noite de ontem, a troca de insultos. Exceto por alguns episódios em que correu sangue no Senado Federal há muitas décadas, eu não me lembro de ter visto maior grosseria do que aquela que alguém dirigiu ao deputado Aldo Rabelo na noite de ontem.



Ou seja, o Congresso está trabalhando sob pressão intensa do Executivo, além das pressões naturais de classes de instituições privadas interessadas. E não é um bom momento para o parlamento brasileiro, não é. Quando isso acontece, quando acontece diante do Congresso vivendo um mau momento quanto da sua composição – eu acho que o Congresso vive um mau momento na sua composição, isso vai do presidente do Senado ao mais folclórico dos deputados recém eleitos.



E soma isso à pressão exercida pelo governo, que se mostrou perfeitamente na noite de ontem. O que se tem é quase que a garantia de que o produto legislativo não será de boa qualidade e vai dar trabalho ao poder judiciário nos próximos tempos.




FATO NOTÓRIO: O STF decidiu – e ainda decidirá – algumas questões polêmicas neste ano. Ficha limpa, equiparação da união estável homoafetiva e o aborto de fetos com anencefalia. Qual sua opinião sobre tais temas? O senhor que foi membro por duas vezes da corte suprema, sentiu vontade de estar sentado novamente numa daquelas 11 cadeiras?
FRANCISCO REZEK: Na realidade não, e vou ser sincero. Sã


o vários os momentos nos últimos dois, três anos, em que eu presencio debate e digo a mim mesmo: “que bom não estar mais ali”.



Porque, primeiro, eu teria dificuldade de me envolver no debate tal como ele está se travando hoje no Supremo – é uma questão de método. Sobretudo alguns temas foram examinados pelo Supremo e decididos pelo Supremo, quase sempre por maioria apertada, sobre os quais eu teria muita dificuldade em formar opinião, confesso isso.

FATO NOTÓRIO: Por fim, o senhor conversou com uma platéia de 1,5 mil estudantes universitários. O que um jurista que foi muito além do ápice da carreira de operador de direito pode aconselhar a jovens estudantes de direito?



FRANCISCO REZEK: O que eu fiz na conferência de hoje foi lembrá-los de algo que certamente já sabem, mas não custa lembrar: que nenhuma ordem jurídica contemporânea dá aos juristas jovens, ou dá aos juristas em geral, aos operadores do direito, tamanhas prerrogativas, tamanho poder de influência sobre a sociedade, tamanha capacidade de exercício da cidadania em nome próprio, em nome coletivo, como a Constituição do Brasil de 88.



Isso nos dá uma responsabilidade muito grande e é preciso proceder de acordo com esta responsabilidade.





Fonte: Fato Notório (Informativo Jurídico Digital) – Clique aqui para conferir

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